quinta-feira, 27 de março de 2008

Os donos da passarela

Marcelo Salles

O carnaval do Rio de Janeiro continua monopolizado pela TV Globo, que é parceira de entidade controlada por bicheiros. Segundo CPI da Câmara dos Vereadores, contratos oneram os cofres públicos em R$ 100 milhões.

É domingo de carnaval, dia três de fevereiro. O relógio da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, marca 22h quando o puxador da São Clemente pega o microfone e se dirige ao público. Enquanto fazia uma saudação sobre a alegria de estar ali e coisas afins, a câmera da única emissora de televisão que transmitiu o evento captou uma imagem simplesmente impagável: um funcionário da TV Globo, devidamente identificado pela camiseta azul com a logomarca da empresa estampada, pega o puxador da Escola pelo braço e tenta posicioná-lo de frente para a câmera, o que só é conseguido após demorados e constrangedores segundos. Suam os dois: um pela emoção de falar para tanta gente e ter a oportunidade de abrir a maior festa popular do planeta; outro porque temia pelo emprego, já que os donos da Globo não gostariam de ter investido milhões de reais para ver uma saudação de abertura que não estivesse no melhor ângulo que suas câmeras pudessem captar.

Mas o funcionário em questão é exemplar. Além do puxador da São Clemente ele puxa pelo braço os homens da equipe de apoio, que trazem na camisa a inscrição “Controle” sob o logotipo da Prefeitura do Rio. Nada mais significativo: era a Globo dizendo onde, quando e como o poder público deveria se posicionar.

Dia seis de fevereiro, quarta-feira de cinzas. Novamente as câmeras da TV Globo voltam suas atenções para a Praça da Apoteose. Dessa vez, o foco principal é a mesa da Beija-Flor de Nilópolis, que lidera a competição até o final. Com o samba-enredo sobre Macapá, capital do Amapá, a escola da Baixada Fluminense arrancou o quinto título em seis anos – sendo que o anterior foi marcado por muitas suspeitas de corrupção, ameaças e chantagens contra os jurados. Aliás, falando nos jurados, é bom ressaltar que um deles, esse ano, foi Bruno Chateaubriand, que ganhou notoriedade ao declarar, em vídeo veiculado pela internet ano passado, que adora atirar ovos contra pobres da janela de sua cobertura na zona sul carioca.

Entretanto, mais interessante que a escolha de uma figura desta estirpe para o corpo de jurados do carnaval carioca, dançado e escrito por pobres, foi a narração da Globo. Custa a acreditar que os locutores conseguiram a proeza de não mencionar o nome de Aniz Abrahão David, o Anísio, que estava no centro da mesa da Escola de Nilópolis e ao lado do cantor e compositor Neguinho da Beija-Flor, este sim mencionado à exaustão pela Globo. Anísio não é um desconhecido para os locutores da Globo. E o foco da câmera, que insistia em focalizar seu rosto, contrastou com o silêncio daqueles que deveriam informar ao público o que lhes era apresentado pela imagem. Trata-se de um indivíduo que foi preso pela Operação Hurricane da Polícia Federal, no ano passado junto com Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, por envolvimento com caça-níqueis, jogo do bicho e as ramificações criminosas daí advindas, como geralmente tráfico de drogas e armas e grupos paramilitares. O bicheiro está solto por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello.

Ao lado dos bicheiros sapatearam os governadores do Rio e de São Paulo, Sérgio Cabral e José Serra, além do deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), filho do prefeito do Rio, e o ministro do Trabalho Carlos Lupi. Até o secretário de Segurança Pública do Rio, o policial federal José Mariano Beltrame esteve presente. O machão da Sapucaí. Autoridades, no dizer de certa imprensa, mas que não foram capazes de exercer suas funções públicas em meio a tanto esplendor, pois não houve notícia de flagrantes contra os artistas e empresários que faziam uso de substâncias ilícitas em seus camarotes privados. Não porque a cocaína seja coisa do demo ou coisa que o valha, mas porque esse hábito costuma ser violentamente reprimido quando é o pobre favelado quem o pratica.

Apoteose da criminalidade

Segundo o jornal O Globo (4 de fevereiro de 2008), a Liga Independente das Escolas de Samba, entidade que controla o carnaval carioca, é dirigida por criminosos. “Apesar da sucessão de processos na Justiça, os bicheiros parecem ter cada vez mais prestígio com os órgãos públicos. Comandada por contraventores, a Liesa receberá neste ano R$ 85 milhões em contratos com órgãos públicos e a iniciativa privada. A Liga recebe recursos dos governos federal, estadual e municipal, totalizando R$ 25 milhões. São R$ 12 milhões da União, através de patrocínios da Petrobrás e de empresas da qual a estatal é sócia; R$ 4 milhões de subsídios do governo estadual; e R$ 8,8 milhões da prefeitura. Segundo as investigações da PF para a Operação Hurricane, a Liga era usada para atender os interesses de uma quadrilha. Em 2006, além do Sambódromo, a Liga passou a administrar um patrimônio de R$ 100 milhões: a Cidade do Samba. Um filho de Capitão Guimarães foi nomeado prefeito”.

A reportagem do Globo é correta, até onde a tinta alcança. Se continuasse a investigação, o jornalão descobriria que existe uma CPI do Carnaval em andamento na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, cujo relatório aponta:

— O contrato entre o Município e a contratada (Liesa) permite, ainda, que a mesma negocie, direta e livremente, o milionário direito de imagem com as emissoras de televisão. Nesta questão, causam estranheza dois fatos: o de a Liesa realizar e assinar um contrato válido por cinco anos com a REDE GLOBO (até 2009), quando o contrato firmado entre a Liga e a Prefeitura é realizado anualmente; e o da coincidência do término deste contrato entre a Liesa e a REDE GLOBO e o término do mandato da atual administração municipal, considerando que o contrato entre a Prefeitura e a contratada para o Carnaval de 2009 é firmado ainda em 2008.

Contextualizando

Compreensível. Depois de afirmar que a Liesa é “comandada por contraventores”, o jornal O Globo não poderia incluir em suas páginas que outra empresa das Organizações Globo mantém um contrato com a mesma Liesa. Nenhuma novidade. O escritor Roméro da Costa Machado (ver entrevista na edição X), que trabalhou durante 10 anos na Fundação Roberto Marinho na década de 90, já divulgara em artigo publicado no jornal eletrônico Fazendo Media (http://www.fazendomedia.com/globo40/romero15.htm) a proximidade do então vice-presidente da Globo, José Bonifácio de Oliveira, o Boni, com o submundo do crime:

— Fui chamado pelo Vice-Presidente José Bonifácio de Oliveira (o Boni) para assessorá-lo pessoalmente, com uma proposta super vantajosa, a qual aceitei sem pestanejar. Mas, em muito pouco tempo não tardou que eu descobrisse que nós dois (Eu e Boni) não teríamos muito sucesso juntos, isto porque ele mesmo, Boni, também era um dos que tinham notas enfiadas na Fundação, sem falar de sua porção "bandido" com ligações com o submundo do crime (bicheiros, gângsteres, etc.) onde o grande "capo" da criminalidade, Castor de Andrade, era simplesmente "irmãozinho" do Boni. Isso foi mais do que suficiente para se tornar um ponto intransponível e incontornável no nosso relacionamento. Tanto que nossas brigas tornaram-se tão inevitáveis até que chegamos ao insustentável, a ponto de dizermos coisas muito desagradáveis um ao outro, culminando com a minha saída voluntária da Globo, onde eu sequer fui buscar o que tinha direito, mas me dando o direito de contar tudo em livro ("Afundação Roberto Marinho", hoje na 12ª Edição). E não sem antes dizer ao Boni que cedo ou tarde os filhos do Roberto Marinho iriam se desfazer dele, como um pesado e incômodo fardo, e que ele só não seria demitido sumariamente naquele momento pelo tanto que ele tinha de ações, participações, e o quanto sabia e estava envolvido nas operações "sigilosas" da Rede Globo.

De lá pra cá, o monopólio da Globo sobre o carnaval carioca aprofundou-se. De modo que um mês antes dos desfiles a Cidade do Samba já se assemelhava a um set de filmagens. Funcionários vestidos com uniforme da Rede Globo estendiam cabos e mais cabos de fios, num emaranhado de fazer inveja a gravação de uma novela. O aparato contava também com três furgões para entradas ao vivo.

Qualquer outra TV que quiser entrar aqui tem que pedir autorização para a Globo, a administração (da Cidade do Samba) já manda direto perguntar para a Globo — relata um trabalhador da Cidade do Samba, onde são acomodados os carros alegóricos das escolas do grupo especial.

Em entrevista concedida à edição de fevereiro do jornal eletrônico Fazendo Media, o professor de Linguagem Impressa e Audiovisual da Faculdade Helio Alonso (FACHA) Ivo Lucchesi declarou a respeito dessa situação:

— Qualquer tipo de monopólio, principalmente em se tratando de meios de comunicação, é nefasto. A Rede Globo assim procede não apenas em relação ao Carnaval, igualmente o faz quanto à Copa do Mundo, extensivo a todos os profissionais que lá atuam. Portanto, as implicações dessas estratégias de controle, no melhor estilo do que conceituou Gilles Deleuze, são graves. Elas favorecem o congelamento de modelos, deixando a falsa sensação de que outros não há. Há tédio maior do que assistir ao desfile das Escolas de Samba com aqueles sucessivos cortes narrativos?

Enquanto a profusão de imagens se sobrepuser à indignação e a criatividade infinita do povo brasileiro não for utilizada para o enfrentamento, dificilmente livraremos nossas manifestações culturais — e o próprio país — daqueles poucos que lucram com a exploração de muitos.

Quadro — o carnaval deste ano também foi marcado pela perseguição da imprensa a determinadas escolas de samba e a proteção de outras. Como anotou o professor Ivo Lucchesi em 2005, havia uma nítida preferência da Globo por Beija-Flor, Grande Rio e Imperatriz Leopoldinense. Curiosamente, as três obtiveram respectivamente, os 1°, 3° e 4° lugares. Na época, a agremiação a integrar a novela Senhora do Destino conquistou, na ficção, a mesma colocação da escola de samba que, na realidade, desfilou. Este ano, as quatro primeiras colocadas foram Beija-Flor, Salgueiro, Grande Rio e Portela, sendo que esta última foi utilizada para a gravação de um capítulo da novela Duas Caras.

Por outro lado, a Mangueira foi perseguida não apenas pela polícia, mas também pelo noticiário. Além de amargar a décima posição, a escola teve que conviver antes, durante e depois do desfile com a presença constante de policiais e repórteres que tinham objetivos comuns: prejudicar o desempenho da escola com a desculpa de noticiar a vida de Francisco Paulo Testas Monteiro, preso por tráfico e libertado após cumprir mais de um terço da pena estabelecida: 43 anos de prisão. Vulgo Tuchinha saiu da prisão e voltou para a Mangueira, onde tentava restabelecer a vida compondo. Dedicou-se à música, venceu dois concorridos festivais e assumiu o nome artístico de Francisco do Pagode. Mas para o monopólio da imprensa ele será sempre um traficante, ao contrário dos criminosos de colarinho branco que pulam o carnaval sem se preocupar em serem importunados. Nem pela polícia, nem por repórteres.

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